segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Filosofia de segunda

Educação: formação ou formatação?


Matheus Arcaro

É senso comum: a educação é o alicerce do homem. Tanto é que esse tema foi explorado exaustivamente no recente processo eleitoral.
Mas, como uma das propostas da filosofia é questionar os paradigmas, os dogmas, ponho duas questões: Será que é mesmo? E, se for, a escola está de fato formando cidadãos?

Para discutirmos isso precisamos analisar as teorias dos currículos escolares. O que é isso? É a escolha do que vai ser passado ao aluno. A questão central de uma teoria do currículo é determinar qual conhecimento deve ser ensinado.
Só aí já cabe uma grande reflexão: o material de ensino é sempre parte de uma seleção. Selecionar é uma operação de poder: ensinando isso e não aquilo, teremos um tipo X ou Y de ser humano. Sob esta perspectiva, o homem seria como uma prova de múltiplas escolhas. Livre para escolher, mas dentro de alternativas pré-determinadas.

Das teorias tradicionais de currículo, podemos destacar a de Bobbit. Sua proposta surge em 1918, no ápice da industrialização americana.
Para ele, a escola deveria funcionar como uma fábrica, pois ambas atuam como “um processo de moldagem”. O sistema educacional deve ser capaz de especificar precisamente que resultados pretende obter, quais os métodos para atingir esses resultados e como mensurar isso.
Os objetivos desse sistema são baseados nas habilidades necessárias para exercer com eficiência as ocupações profissionais da vida adulta.
Enfatizando o tecnicismo, sobra pouco para a criatividade.

As teorias críticas aparecem para inverter os fundamentos das teorias tradicionais. Elas desconfiavam do status quo, responsabilizando-o pelas injustiças sociais.
Um dos seus grandes expoentes é Althusser, que conecta educação e ideologia. Ideologia, para ele, são as crenças que nos levam a aceitar as estruturas sociais existentes como boas e desejáveis. A disseminação dessa ideologia é feita pelos aparelhos do estado: polícia, religião, família, mídia, e, principalmente, a escola, que atinge praticamente toda a população por um período longo de tempo.
Mas, como a escola transmite essa ideologia?

No trecho de um livro didático, fica evidente:
“Pedro adora jogar bola depois da escola. Seu pai não pode buscá-lo, pois trabalha duro para sustentar a família. Claudinha, sua irmã, vai ao balé três vezes por semana. A mãe cuida de todos. Maria limpa tudo. Ela já faz parte da família. É uma preta feliz”

Que beleza! Os filhos praticam as atividades condizentes aos seus sexos: o menino joga bola e a menina faz balé. A mulher, rainha do lar, é submissa ao homem mantenedor e se conforma com isso. E o pior: a empregada sente-se feliz pelo fato de ser tratada com dignidade por uma família de brancos, como se fosse o máximo alcançável por uma criada negra.

Para os autores Bowles e Gintis, a escola é o espelho das relações sociais do local de trabalho capitalista. Formata o aluno pelo próprio modelo de funcionamento: obediência às ordens, pontualidade, assiduidade, etc.

Para Bordieu e Passeron, a cultura da classe dominante é tomada como molde de ensino e, para que ela se mantenha como “a cultura” é necessário que pareça não arbitrária. Ai, ocorre uma dupla violência: a imposição da cultura de um lado, e a ocultação da imposição, de outro.

Outro trecho de livro didático evidencia isso:
“O operário mostra suas mãos cheias de calos: durante toda a terra tocaram a terra, os fogos, os metais. Estão cheias de riquezas, estão negras, cansadas e pesadas; Diz o senhor: Que beleza! Assim são as mãos dos santos.”

É sutil a maneira como os valores são impostos. Mas, analisando esse excerto, podemos extrair, dentre outras coisas: a hierarquia senhor-escravo, o elogio às conseqüências do trabalho para a manutenção dessa hierarquia, a comparação das mãos do trabalhador a um ícone da igreja católica, etc.

Ao contrário do pensamento vigente hoje em dia, Aristóteles hierarquizava os saberes da seguinte forma: primeiro as ciências teoréticas, que cuidavam do estudo das causas primeiras. Depois as ciências comportamentais, que compreendiam a política e a ética. Por fim, as ciências produtivas, mecânicas. Por isso, afirmava o pensador, que o cidadão não podia trabalhar, pois para quem trabalhava não sobrava tempo à reflexão. O trabalho equivalia, portanto, a condenar-se a uma existência mecânica.

Aristóteles prezava o conhecimento pelo conhecimento. O fundamental para ele era cultivar a essência do homem: a sua racionalidade.
Mas, no sistema no qual estamos inseridos, isso é inconcebível. Não há porque conhecer o que não me vai ser “útil”.
Isso explica a predominância do modelo tecnocrático de Bobbit até hoje.

E, talvez explique também porque os cursos de administração estão sempre lotados e os de filosofia sofrem para formar uma turma.

7 comentários:

Raul Otuzi disse...

Muito, muito bom texto, Matheus!
Acredito que todos os professores deveriam lê-lo e refletir a respeito.

Assim, sem dúvida, teríamos maior responsabilidade, envolvimento e comprometimento com os nossos alunos.

Que assim seja. Nosso papel é promover o questionamento, o raciocíno crítico e a criatividade.

Grande abraço!

Anônimo disse...

Nossa... esse texto levanta tantas questões que eu tive que enumerar as principais:

1- Acho que a escola não é todo o alicerce, mas uma parte importante dele.

2- Não conheço nenhuma escola que cumpra o papel de formadora de cidadãos de maneira exemplar.

3- “Livre para escolher, mas dentro das alternativas determinadas”, este é um bom gancho para discutirmos o conceito de liberdade.

4- A escola brasileira foi baseada no modelo da escola de Coimbra. Os senhores feudais mandavam seus filhos para estudar em Portugal, e os conhecimentos eram voltados para a formação de agricultores, veterinários e ao mesmo tempo gestores do feudo. Por isso nossa educação segue essa estrutura tão pragmática. Ao mesmo tempo, alguns fugiam da escola de Coimbra e iam para a escola de Paris, o que mais tarde resultou na construção do pensamento iluminista. Eis a diferença.

5- Nos EUA, o principal objetivo da construção de escolas na colonização era alfabetizar as comunidades para que aprendessem a ler a bíblia e interpretar a doutrina protestante. Acho que esse é um bom exemplo sobre o tal "processo de moldagem", o cumprimento de um objetivo definido.

6- Só há razões para ser pessimista. Além de não construir valores e formar cidadãos, a escola insiste em um modelo baseado em punição. Provas, vestibulares, progressão, suspensão, expulsão, chapéu de burro, canto da sala, sala da diretoria, nota vermelha. Crescemos com todos estes reforços negativos, o medo de ser punido é na verdade o principal estímulo para se aplicar aos estudos.
No fim, a escola desconstrói personalidades e forma seres ocos e inseguros.

Matheus Arcaro disse...

Grandes observações Eduardo.

Matheus Arcaro disse...

Grandes observações Eduardo.

Anônimo disse...

É mesmo muito intrigante o texto do Matheus. E compartilho com vocês uma dúvida. Onde estaríamos sem tal pragmatismo mencionando aqui? Lembrando que esse “foco” cartesiano e mecanizado promoveu de um lado inúmeras descobertas científicas em todas as suas áreas de atuação (energia elétrica, telefone, meios de comunicação, penicilina, computação, psicanálise, etc) e de outro promoveu o maior desastre ambiental da história da humanidade, nunca destruímos tanto em tão pouco tempo (e estou falando do período pós-revolução industrial).

E aí? Qual seria o modelo de sociedade que teríamos? Talvez com diversos “Papas” assombrando e explorando a população como na Idade Média? Não chegaríamos ao sistema Republicano? Lembrando que o pensamento iluminista foi o propulsor da Revolução Francesa.

Intrigante Matheus. Parabéns

Anônimo disse...

A reflexão e a busca pelo conhecimento geram desconforto, Matheus! A problematização que coloca em xeque nossos próprios conhecimentos na caminhada incessante pela Verdade Absoluta (inatingível) torna-se inconcebível a essa sociedade capitalista e superficial que estamos vivendo.

Talvez por essa razão, os cursos de administração estão muito mais cheios que os de filosofia, psicologia, letras e pedagogia. As pessoas buscam o ter e não o ser. O “ser” não gera lucros, não troca carro, não proporciona luxo.

Na época de Aristóteles não havia rapidez de comunicação e informação, era tempo de reflexão, de conversa, diálogo, troca de opiniões, questionamentos, olho no olho. Nos dias de hoje, a quantidade supera a qualidade até em relacionamentos. Não existe apego, valores, individualidades. Logo, pra que refletir? Pra que opinar? Pra que ouvir?

O Senso Comum ainda joga a Educação brasileira como mero produto de um sistema Educacional Falido e descontextualizado - ESCOLA. Concordo com você quando questiona os materiais didático-pedagógicos e a formação de nossa grade curricular. E nesse sentido, cabe mesmo ao professorado trabalhar de modo crítico e diferenciado lendo, discutindo textos para além do texto em si e buscando a conscientização dos educandos da importância desta ação.

Nesse aspecto, temos outro impasse. O mesmo Senso comum descreve seus profissionais como incapacitados, mal informados, mal formados, mal remunerados...rs. Torna-se difícil convencer seus alunos (em especial adolescentes) do contrário e principalmente, de que devem ser respeitados e ouvidos.

Aliás, se pensarmos em vozes e opiniões, onde estão nossos aprendizes? Qual o papel deles na educação? Mantêm o mesmo papel da época de Aristóteles?

O sistema sócio-político calou a todos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os que são curiosos, interessados e criativos, ficam à mercê de muitos que buscam na escola somente o assistencialismo. O famoso ECA que em seu art. 53 coloca que

A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - direito de ser respeitado por seus educadores;

III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;

IV - direito de organização e participação em entidades

V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.


Porém, estar na escola significa que estão estudando, aprendendo, questionando e buscando a formação plena, em comum acordo com o legado dos professores? O Estatuto deixa explícitos os direitos das crianças e dos adolescentes, os deveres da Família e da Escola, mas e nossos alunos, quais são seus reais interesses no processo ensino-aprendizagem? Buscam o conhecimento ou estão preocupados apenas com resultados numéricos e menções em finais de bimestre?


“Educador e educandos(...) co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento” (Kosik)


Quando Bowles e Gintis afirmaram que a escola é o espelho das relações sociais do local de trabalho capitalista, o contexto ainda era outro, havia uma educação voltada ao trabalho, à profissão. Mas quantos pais de família, “formados” estão sem emprego? Até pra isso a educação perdeu um pouco o sentido. Entretanto, estavam certos ao utilizarem a palavra “reflexo”, uma vez que o descomprometimento com a civilidade, com a polidez de forma geral, está nos jornais, televisão, rádios e no comportamento da sociedade em si.


O que temos encontrado na sociedade talvez tenha sido fruto dessa evolução do ser humano recheado de direitos e sem limites; pessoas que são capazes de jogar crianças prédio abaixo, que matam namoradinhas por não aceitarem um rompimento e que se matam aos poucos com drogas em baladas de todos os tipos de classe.

Como poderia o ambiente escolar ser diferente disso? Nesse aspecto, volto a parabenizá-lo, Matheus, pelo questionamento que fez nesse blog.


Já dizia Paulo Freire:

“(...)ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo; os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.”


Você, como publicitário e também filósofo, está cumprindo um papel importante na sociedade e fico feliz com a oportunidade de ter ganhado mais um amigo crítico e ativo que, com certeza, terá sempre algo a me acrescentar.

Unknown disse...

Na realidade, Matheus, Renata e demais comentaristas, não se trata apenas do "sistema" ou das "escolha disciplinares", nem de seguir ou não determinado filósofo, sociólogo ou pedagogo. Trata-se de se ter ou ser ou professor que, apesar de tudo isso, consegue no seu trabalho diário bular tais converções e mostrar ao aluno que ele é o principal agente de sua educação, mas que parte dela também depende dos demais (o famoso "estou em pé sobre ombros de gigantes" de Isaac Newton).
Agir assim em uma sala de aula não é difícil, mas gera reações (não maioria das vezes previsivelmente negativas) pricipalmente por parte dos pais.
E, para responder sua pergunta, Matheus, nas salas em que eu dou aula, a maioria dos "vestibulando" sempre quis enfrentar pais e outras pessoas e prestar Filosofia, Sociologia, História em lugar da Administração, Direito e Medicina tradicionais, para desespero dos pais e da direção. (rs.)
É só uma questão de como enfocar e lidar com o sistema, afinal, "uma idéia pode ser mais forte que um canhão", como já diziam os Antigos.