segunda-feira, 8 de junho de 2009

Filosofia de segunda

A sociedade contemporânea e o consumo

Na última quinta-feira, fui a uma excelente palestra (que faz parte do projeto “café filosófico” organizado pela CPFL) ministrada por Luciane Lucas dos Santos. Juntando as considerações de Luciane com a minha bagagem e meu feeling, redigi uma análise que compartilho com vocês. Antes, porém, apresentemos a palestrante: Luciane é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Concluiu o doutorado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2004. Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sua pesquisa está relacionada aos seguintes temas: fome, consumo de alimentos e modos de produção, consumo crítico, práticas discursivas e representações sociais na mídia.

Agora, ao mais interessante.

Claro está que o consumo é intrínseco à vida contemporânea sem sequer existir a possibilidade de dissociação deste com o ser humano propriamente dito. Isso por si já é passível de inúmeras reflexões críticas. No entanto, por força do hábito, tomamos tal relação como natural.

Surge a pergunta: o que consumimos?
Vem à mente a resposta mais elementar: bens materiais e serviços. Mas, mesmo sem uma reflexão profunda, é possível chegar à conclusão que isso não é tudo. Consumimos também tempo, espaço e, principalmente, representações. A representação da perfeição, da beleza, da força, da atuação sobre as possibilidades. Por exemplo: quando compramos um carro, além do bem material, compramos o domínio sobre a distância; ao usarmos a tecnologia do skype, atuamos sobre a ausência e assim por diante.

O consumo, em certo sentido, é um Raio-X das entranhas da civilização, pois é capaz de desvendar o imaginário social, a arqueologia das relações humanas. É, pois, um classificador social, já que delimita “quem sou”, “com quem quero me relacionar”, “se quero ou não pertencer a tal grupo”, etc. (há uma crônica muito interessante do Fernando Sabino, intitulada “lixo” que explora isso. Um primeiro encontro entre dois vizinhos que ‘se conhecem’ sem nunca terem conversado antes. Essa façanha dá-se, pois um analisa o lixo do outro e, conseqüentemente, seus hábitos de consumo).

Mas, ainda sim, o buraco é mais embaixo quando falamos da mercantilização do mundo das trocas. Tudo é mercadoria. Exemplo elucidativo: uma empresa suíça promete “imortalizar” o ente querido que partiu dessa para uma melhor. Ela crema o corpo e o transforma em pingente para que o parente ou amigo fique “mais próximo do peito” de quem ficou por aqui.Clara banalização da morte, transformação do afeto em um “bem”

O filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) classifica a sociedade contemporânea como a sociedade do controle.

Como é isso?

As instituições sociais modernas produzem indivíduos sociais muito mais moveis e flexíveis que antes. O indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas. Mesmo fora do seu local de trabalho, continua a ser intensamente governado pela lógica disciplinar e pela lógica do confinamento (sem que seja necessária a existência de muros que separem o lado de dentro das instituições do seu exterior). Há uma vigilância contínua, concretizada, por exemplo, pela propagação das câmaras espalhadas por toda a parte.

Outro ponto importante da sociedade de controle é a performance, pois esta dita as regras e os costumes. Paradoxalmente, há a necessidade de aceitação em determinado grupo social (que por apropriação vira nicho mercadológico) e, ao mesmo tempo a necessidade de diferenciação dentro do próprio grupo. A fronteira entre o suplício e o prazer, entre o são e o doentio dilui-se: de um lado um anúncio convida (covardemente) aos deleites de um delicioso chocolate. Do outro, inúmeras revistas estampam corpos perfeitos em suas capas e revelam “receitas” para alcançar tal perfeição.

Por trás disso tudo há uma flexibilidade aparente. É possível, por assim dizer, trabalhar sem um horário fixo, mas a necessidade de alcançar a melhor performance impõe um stress constante. Tomamos banho pensando num projeto. Ouvimos rádio à noite montando uma apresentação para o dia seguinte. Assim, perpetua-se uma escravidão silenciosa.

Há mais uma questão essencial nessa sociedade: as pessoas geralmente tomam o que gostam como absoluto. Que mulher, hoje em dia, olhando para outra gordinha diria: eu quero ser igual a ela! Pode parecer estranho mas já foi assim. Exemplos não nos faltam se analisarmos as pinturas dos mestres seiscentistas.
O que quero dizer com isso?
Que gosto é cultural; se transforma ao longo do tempo. E o que nos é imposto hoje (a magreza, por exemplo) não pode ser absorvido e tomado como verdade e pior, como paradigma.

Debord (1994), descreve a sociedade contemporânea como a sociedade do espetáculo, que substitui o cogito cartesiano “Penso logo existo” por: “Sou visto, logo existo”.
Haja vista o sucesso de reality shows como o Big Brother.

A Mídia é uma "contribuidora" e tanto para este processo. Mesmo quando parece crítica, é preciso analisar com cuidado pois, na maioria das vezes, ou ela é descritiva ou sensacionalista.
E, além disso, na mídia propaga-se o que deve ser consumido. Cientificiza-se o discurso midiático, como nos casos dos cremes de beleza que são testado nos melhores laboratórios, pelos melhores cientistas. Perde-se a credibilidade no vazio discursivo. Outro exemplo: título de capa de uma revista de circulação nacional “Chegue com todo gás aos 100 anos!”
Então, cabe a questão: estamos preparados para viver 100 anos?
Difícil, pois na sociedade contemporânea, a vida do sujeito resume-se a vida profissionalmente “ativa” O despreparo revela-se em tentativas de projetos para a terceira idade que infantilizam o “viver bem”, reduzindo a vida dos idosos a programas de lazer que passam longe da autenticidade necessária.
E esse indivíduo “ativo” se sujeita a trabalhar 8 horas por dia (às vezes mais) num lugar que muitas vezes não gosta em prol do consumo. O trabalho, tão bem quisto por Marx como realização do homem, fica subjugado pelo consumo. O Ter sobrepõe-se ao Ser.

Mas afinal, é possível mudar isso?

Infelizmente, a modernidade iniciada com a Revolução Cientifica no século XVI trouxe consigo a definição de quais seriam os saberes importantes. O mecanicismo e a utilidade sobressaltaram sobre a reflexão e a imaginação.

Para tentarmos reverter o quadro é preciso “remar contra a maré”; desconstruir o conceito de consumo. E isso passa por alguns pontos:

Analisar friamente tudo o que consumo: se é necessário o que vou comprar, se compro de instituições responsáveis (cuidado com os discursos de “empresas conscientes”, “politicamente engajadas” que, em sua grande maioria, não passam de “marketês”, com o velado intuito de vender mais e mais.

Desmistificar o termo “consumo consciente” que circula por ai. A grande maioria sequer sabe o real significado. Um exemplo: muitas pessoas acreditam que utilizando papel reciclado estão contribuindo para o meio ambiente. Mas, tendo em vista que o bem mais precioso e escasso hoje é a água, essa é uma idéia errônea, já que gasta-se 8 vezes mais água no processo de reciclagem do que na fabricação convencional. O certo seria comprar de empresas que reflorestam.

Por fim, acompanhar de perto as políticas governamentais e cobrar medidas efetivas.

Como publicitário sei que escapar desse sistema é praticamente impossível, ainda mais quando sua profissão é fomentar o consumo. Mas, um passo importante é colocar o assunto em discussão. E isso, espero ter feito com esse artigo.

4 comentários:

Rony Neves disse...

Pois é meu amigo, sempre ouvi dizer que os jovens iriam transformar o mundo, mas nunca imaginei que era pra pior.
Fica o consolo de que pelo menos o café filosófico não cobra entrada, rs.

Tem um filme em exibição (Os delírios de consumo de Becky Bloom) que retrata um pouco disso tudo.

Abraços e obrigado pelo conteúdo.

IN_Soma disse...

Consumo consciente, sustentabilidade e responsabilidade social são termos a caminho da banalização, assim como a imagem do Che, para logo em seguida perder o sentido ou despertar aversão ao público, a exemplo de quando se fala em política. A conseqüência disso é a continuação do modelo de consumo atual (cada vez mais coisificado e/ou desenfreado) que nesse curso espaço de tempo (alguma décadas) provou ser altamente prejudicial e destrutivo. Mas a má conseqüência será o maior fator de mudança. Refiro-me às mudanças climáticas anunciadas desde as décadas de 70 e 80 e que eram tratadas como discurso “ecochato” e agora é fato.

Talvez as conseqüências não ainda chegaram ao ponto necessário para mudanças, que na minha opinião só acontecem depois de muito sangue derramado, milhares de vida e um certo período de caos social. Mas em breve a humanidade poderá assistir (passiva ou não) a um êxodo gigantesco de pessoas, mudando-se para regiões mais férteis e estáveis em busca de terreno para cultivo, água potável e comida, forçando mais alguns confrontos culturais e bélicos.

Já foi provado que o modelo de consumo atual é falho e irresponsável. Segundo Leonardo Boff, um dos autores da Carta da Terra, se quiséssemos alinhar toda a população mundial ao padrão econômico dos países ricos, precisaríamos de mais dois planetas iguais a Terra. Estamos em um estágio critico da história em que empresas e estado são desafiados a propor novos caminhos e, do outro lado, os consumidores são os responsáveis por manter ou não negócios nada sustentáveis, tais como o consumo de carne bovina, produtos “made in china” e outros quintais asiáticos, etc.

Para cooperar com o debate, sugiro que assistam ao mini-documentário “A História das Coisas”:

http://innsoma.blogspot.com/2009/04/historia-das-coisas.html

Questionador disse...

Interessante:
A havaianas, até pouco tempo, era chinelo de pobre. Hoje, é vendida na Europa por mais ou menos 100 euros.
Por que?
Discursos publicitários que tentam embasar tal feito (construção de marca, valor agregado, etc.) são demasiado superficiais para chegarmos ao cerne do problema.
A grande questão é: quais os critérios de valoração na sociedade contemporânea?

Matheus Arcaro disse...

É pessoal.
O que chega aos nossos olhos - o consumo como inclusor social (tese inclusive defendida por estudiosos de peso) não é o que acontece de fato.
Se pegarmos como exemplo a linha de produção da nike temos uma amostra: um par de tênis Pegasus que é fabricado na China ou nas Filipinas tem o custo de $1,66. Nos USA é vendido a $70,00.

Nossa sociedade é míope ou se faz de míope???