segunda-feira, 23 de março de 2009

Filosofia de segunda

O medo da morte.

A definição de Aristóteles é clássica: o homem é um animal racional. A proposição traz em si inúmeros desdobramentos, dentre eles: o homem é o único animal que tem consciência de estar vivo. Forçosamente, tem consciência que vai morrer. Convive permanentemente com a companhia dessa dama. E, para muitos, esse fardo é demasiado pesado. Se hierarquizássemos os medos do homem, a morte, com certeza, estaria no cume. Perguntarmos o motivo parece óbvio, mas não é.
O que nos aflige: o fim ou o desconhecido?
Suponhamos, por força de exercício, que, a partir de agora, não haja mais morte. Você, leitor, viverá eternamente. Como se daria isso? Não envelheceríamos? Chegaríamos a um estágio de crescimento e pararíamos? Para que faríamos agora isso ou aquilo se pudéssemos fazer depois, daqui uns dois milhões e oitocentos mil anos?
A calamidade que seria a “ausência” da morte é explorada com maestria pelo escritor José Saramago em “As intermitências da morte”.

Voltando à mortal realidade.
A maioria das pessoas tem medo até de falar sobre o assunto. “Falar de coisa ruim, atrai coisa ruim”. No entanto, não se dão conta que 90% do que assistem nos noticiários da TV é sobre morte. Eis o paradoxo: o tema está banalizado sem sequer ser discutido.

Abordemos, então, com certa profundidade. Suponhamos por um minuto que Deus não exista. Que a morte seja o fim, como pensava, por exemplo, Epicuro que, para alicerçar seu hedonismo, dizia que nada seria tão forte a ponto de perturbar a alma de um homem sábio, nem mesmo a morte, já que esta não existia para o individuo, visto que, quando chegava, o homem já não era. Vida e morte jamais coexistiam. O homem nunca encararia sua própria morte. Portanto não haveria o que temer.
Sem Deus, sem a recompensa da vida eterna, homem teria motivo para agir bem?
A maioria pensa como um dos personagens de Irmãos Karamazov de Dostoievski: “Se não há Deus, tudo é permitido”.
Daí, muitos pensadores reconhecem a necessidade de entidades metafísicas, mesmo que alguns destes admitam que estas sejam criações humanas. São úteis à manutenção da ordem. Para Kant, ao contrário, não há necessidade de divindades para o bem agir. A razão seria o único instrumento necessário para isso. Aliás, sequer haveria possibilidade de afirmações sobre algo fora do binômio tempo-espaço, como Deus, alma, etc.
Bom momento para abordarmos a idéia infantilóide que traçamos de Deus. Se Deus é eterno, obviamente não existe no tempo. Passado, presente e futuro são a mesma coisa para Ele conforme afirmava Agostinho, um dos pilares do cristianismo. Agostinho afirmava ainda que quem interpretasse literalmente a Bíblia não estava apto a discutir assuntos teológicos. Outro ponto: Deus não pode ser matéria como os corpos, já que toda matéria é corruptível. E mais: Deus não pode querer, visto que quem deseja, é carente de algo, portanto incompleto e finito. A expressão “Se Deus quiser” ou “Deus quis assim” não fazem o menor sentido lógico.

Platão se não o primeiro, foi pensador antigo mais original ao abordar a imortalidade da alma. Para muitos estudiosos, o sistema filosófico platônico é sustentado pela morte, já que Platão cindiu o mundo em duas realidades: uma perfeita, o mundo das idéias e outra, imperfeita, o mundo sensível, este que vivemos. Se almejamos o conhecimento, temos que ascender às idéias e, para isso, não podemos ficar presos ao corpo. Daí, a máxima de Nietzsche (1844-1900): “o cristianismo é o platonismo das massas".

Ainda no que tange a religiosidade, a morte do Papa João Paulo II, me fez cair numa armadilha lógica. Acompanhem comigo: o que o cristão mais almeja é alcançar a vida eterna. Em teoria, não há pessoa na Terra que a mereça mais do que o representante máximo da Igreja. Logo, o choro na morte do Papa pode ser interpretado por duas vias: ou falta de fé ou egoísmo, posições que contrariam a doutrina cristã.

Heidegger (1888-1976), filósofo existencialista, dá ênfase ao sentimento de angústia do homem diante da morte. A angústia da morte é algo que altera tão radicalmente o homem que o transforma em existente, o único ser autêntico, o único ser individual, o único ser realmente mortal.

O ponto-chave da filosofia da existência é seu conceito de tempo. A tradição pré-existencialista imaginava o tempo como algo anterior e posterior ao homem, visto que este nasce e morre "no meio do tempo". No existencialismo, considera-se a impossibilidade do homem imaginar um tempo em que ele não esteja presente — tanto no passado como no futuro — para daí deduzir que não faz sentido falar sobre o tempo como algo fora e independente do homem.

A imortalidade, como vimos, não seria a solução para a angústia. Não se a concebermos de maneira literal. Agora, se a enxergamos como o que de você será lembrado, as possibilidades se alargam. Temos exemplos: o herói trágico grego, com sua coragem nas batalhas. O escritor, o filósofo, o músico, o artista com suas obras. Num terreno mais cientifico e ao mesmo tempo acessível a todos, com a nossa descendência, que levará adiante parte de nós.

Diante dessa discussão alguns levantam a questão: mas se é certo o fim, temos mais é que aproveitar a vida. Mas o que significa isso? A resposta para essa pergunta daria outro longo texto. Por hora, fiquemos com o senso comum: aproveitar a vida é desfrutar de tudo o que ela nos pode oferecer. Estes concluem então que o mais sensato é beber, sair, transar, etc. Claro que isso é essencial. O problema é quando a vida resume-se a isso. Voltando à primeira frase: o homem é um animal racional. O único. O que o diferencia dos demais. E, não aproveitar esse diferencial que o capacita para estudar, argumentar e, principalmente refletir, é reduzir o homem a sua animalidade. No limite: homem e gado no mesmo degrau evolutivo.

Um comentário:

Raul Otuzi disse...

Filosofia de segunda, texto de primeiríssima qualidade. Parabéns, Matheus!

Informa e faz pensar. A última frase, principalmente. "No limite: homem e gado no mesmo degrau evolutivo."