segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Filosofia de segunda

Informação X Conhecimento

Há algum tempo o jornal “O Estado de São Paulo” anda veiculando um comercial (ver aqui) no qual o argumento de venda é a distinção entre conhecimento e informação. A diferenciação, em si, é pertinente. No entanto, cabe um aprofundamento na questão. Para isso, recorro a um pensador do século XVII, John Locke .

A teoria do conhecimento de Locke, exposta na obra “Ensaio sobre o Entendimento Humano” é empirista, ou seja, para ele todo conhecimento é, fundamentalmente, derivado da experiência sensível. O objetivo inicial da obra é, na verdade, político: expurgar o poder absolutista vigente na Inglaterra. O absolutismo era alicerçado no inatismo (que defendia que algumas idéias nasciam com os homens, gravadas na mente). Os soberanos, então, governavam por uma “concessão divina”; eram legítimos herdeiros daquele que criou o universo. “A mente humana é uma folha em branco, preenchida ao longo do tempo com a experiência”, afirmava Locke. Nessa perspectiva, todos nascem iguais. Demonstrado que o conhecimento deriva da experiência, o absolutismo alicerçado no inatismo cai por terra.

Entrando na questão do conhecimento propriamente dito: refutado o inatismo no início da obra, Locke vai mostrar como se dá o aprendizado, ou seja, como ocorre a passagem das impressões particulares para as idéias gerais e abstratas. São 5 passos:
1- Os sentidos recolhem o material que vai formar idéias particulares.
2- O entendimento vai se familiarizando com as impressões particulares decorrentes dos sentidos.
3- As idéias familiarizadas são alojadas na memória.
4- Para recuperar as idéias na memória, rotulam-se as mesmas, ou seja, emprega-se um nome aos conceitos (daí a importância da linguagem. Ela é o meio pelo qual as idéias exteriorizam-se).
5- Abstrai-se e criam-se nomes gerais, universais, que todos (ou quase todos) são capazes de entender.

A definição lockiana de conhecimento é: “percepção do acordo e conexão ou desacordo e oposição entre as minhas idéias”. O conhecimento é interno ao sujeito. É a capacidade de relacionar ou constatar o desacordo entre idéias. A informação (este não é um termo contemporâneo de Locke) é exterior. Pode virar ou não conhecimento.

Que benção! Se a informação pode virar conhecimento e vivemos na era da Sociedade da Informação, a possibilidade de conhecimento é grande, né? Não é bem assim. Recorramos novamente ao “Ensaio sobre o Entendimento Humano”. Locke nos fala de 3 graus de conhecimento:
Primeiro, o intuitivo que consiste na comparação imediata entre duas idéias, sem, portanto, necessidade de mediação. Mas não é sempre que conseguimos comparar sem mediação. Então surge o conhecimento demonstrativo, racional, que consiste na intermediação entre duas idéias para que haja a ligação. A matemática é um exemplo. Por fim, temos o sensitivo, que é a percepção das coisas particulares, limitado pelos próprios órgãos sensoriais. Este, só é válido para aquele momento. “Não é possível fazer-se ciência nesse grau de conhecimento”, diz Locke.
A informação está nesse grau.

A Sociedade da Informação não é, necessariamente, benéfica. Ao contrário, pode ser um obstáculo ao conhecimento. Conhecimento é um processo interno. É a possibilidade de aplicar o aprendido a outras situações, generalizar.
Conhecimento é “digestão”. Mas, hoje em dia, mal comemos uma informação, já temos outra sobre a mesa. Vorazes, devoramos. Engordamos, mas não estamos nutridos.

Repassar informação! Eis o que a maioria das escolas faz. Pressionadas pela necessidade de aprovação no vestibular, enxergam os alunos como “sacos” de depósito de conteúdo. Não ensinam a pensar, a fazer as conexões (como Locke aponta ainda em 1690).

Dicionários contemporâneos colocam conhecimento e informação como sinônimos. E, algumas pessoas tomam um pelo outro. “Menina, você não viu isso hoje no jornal?”, perguntam indignadas. Viram papagaios. Reproduzem o que ouvem ou lêem.

Voltando ao Estadão. O comercial é todo pautado pela oposição entre conhecimento e informação. Vejamos algumas colocações:
“Se hoje informação é de graça, qual o valor do conhecimento?”
Visão estritamente mercantil. Conhecimento, aqui, é mercadoria. O valor cognitivo seria aumentado pela gratuidade da informação. Que beleza!
“Conhecimento é difícil de achar.” Eis uma definição brilhante! O conhecimento não é “achável”. Como vimos, é um processo interno do sujeito.

Jornal, seja ele qual for, não traz em si o conhecimento. Mas se, por ventura, um trouxesse, todos trariam. Ilustro com manchetes desse domingo (18/09/09):
Estadão on line: “PM busca traficantes e corpos em quatro morros da zona norte do Rio
Folha on line: “Mais inocentes podem ter morrido no Rio, diz PM

Para usar como argumento de venda a distinção entre conhecimento e informação, ou a agência de publicidade do Estadão sabia que o jornal não fornece conhecimento e foi imoral, ou (o que é mais provável) só tinha informação e não conhecimento sobre o conhecimento.

4 comentários:

Renata Galvani disse...

Olá, Matheus!

Belo texto! Concordo que conhecimento é algo interno e muitas vezes doloroso, pois é preciso entrar em contato, modificar pensamentos, aceitar uma nova postura que poderá e será reorganizada continuamente.
Por isso, além de ter clara a distinção entre informação e conhecimento, precisamos refletir sobre as motivações que nos levam a entrar em contato com essa quebra de estrutura e a buscar esse conhecimento. Eis que surge o problema!
Como parar para refletir e buscar saberes qualitativos e gratuitamente em uma sociedade imediatista e capitalista como a nossa?

@rony_neves disse...

Considerando o conhecimento como o recheio e a informação como a cobertura, no bolo da educação qual o interesse do aniversariante em ensinar as formigas que embaixo existe algo mais doce?

Intercâmbio Brasil-Peru disse...

Olá amigos!
Este debate é algo que me agrada um bocado...para jogar lenha na fogueira aqui vai uma provocação:
Será que o papel da escola é contribuir para a construção (palavra tão usada no senso comum educacional) de conhecimento, que concordo ser algo interior e mais profundo, OU proporcionar estímulos que desenvolvam certas habilidades específicas tornando o educando capaz de "digerir" com suas próprias ferramentas este turbilhão de informações que nos apresentam no dia-a-dia; em outras palavras, devemos dar o peixe ou ensinar como pescar?!

Grande Abraço!

Renata Galvani disse...

Oi, Vitor!!! Com ctz proporcionar estímulos. Então coloco mais lenha... os educando estão na escola porque sonham com o conhecimento, ou com o que isso pode lhes proporcionar(formação e principalmente dinheiro)? Vou um pouco além... Porque será q muitas crianças preferem o tráfico ao estudo?? Será q pelo "estímulo rápido" de um dinheiro "fácil"?