segunda-feira, 12 de julho de 2010

Concurso Guemanisse de Contos

É com satisfação que compartilho com vocês essa conquista.
Com 2.019 contos inscritos, de todo o Brasil, ganhei menção honrosa (8º lugar), com o conto "ausência confirmada" que publico na íntegra abaixo:


AUSÊNCIA CONFIRMADA


A imagem, estranha e familiar, causou-lhe certa satisfação. Eram vários homens ao espelho. Na verdade, todos os que o formavam nestes trinta e três anos. Observou cada detalhe, cada vestígio emprestado. As enormes olheiras contrastavam com a simetria helênica do rosto. Sorriu ao apalpar a mancha sob o olho esquerdo. Uma atípica sensação brotou-lhe no estômago, cresceu pelos pulmões e explodiu garganta afora:
- É agora!
Gargalhou e repetiu eufórico:
- Agora!
Como eram belas aquelas manchas roxas! Mais que as horas de ensaio, revisões dos diálogos e figurino, simbolizavam toda uma trajetória prestes a culminar no seu espetáculo, sua própria peça teatral.
- Seu casaco - sussurrou o assistente esticando o braço pela porta entreaberta.
- Põe aí na cadeira, por favor.
O pensamento das últimas semanas ressurgiu abruptamente, substituindo-lhe a feição tensa por uma afável: a platéia vidrada no palco; atores e espectadores em plena sintonia; o teatro não lotado, mas com as pessoas que ali deveriam estar.
Reservou na primeira fila o melhor lugar. Não que fosse cauteloso, mas a ocasião exigia tal preocupação. A ideia de compartilhar seu maior feito com o amigo excitava-o com a mesma intensidade que a própria realização. Ao contrário do total acaso que lhe parecia ser a família, Fábio estimava o poder de escolha inerente à amizade. Eduardo era a personificação desse sentimento. Mesma escola, mesmos heróis, mesmos gestos. Cúmplices antes mesmo de entenderem o significado de cumplicidade. Eduardo sempre fora o mais seguro dos dois. Era o apoio que Fábio não tinha em casa.
- Vai ser um grande ator, Fabinho. E, claro, faço questão de te aplaudir em pé!
Fábio franziu a testa ao pensar no prometido aplauso. Assustou-se com a correspondência do movimento ao espelho. Os poros trabalhavam além do normal; as papilas salivares, por outro lado, censuravam aos lábios o direito da separação.
O primeiro sinal ecoou camarim adentro. Puxando o casaco felpudo, despiu suavemente o encosto da cadeira; lembrou-se da primeira vez que se meteu a atuar. “Quantas primeiras vezes foram ao seu lado, amigo!” – murmurou, abençoando-se com o sinal da cruz de baixo para cima.
Bateu a porta da sala ao perceber que estava sendo observado pela companheira de palco. De um lado a outro, intercalava passos largos e curtos. Os olhos buscavam um ponto para repousarem. Sentou-se, levantou-se, sentou-se. O movimento para enxugar o rosto foi bruscamente interrompido pela sensação de familiaridade com aquele pedaço de papel. Num lenço semelhante, ele e Eduardo compuseram a primeira música, deviam ter uns onze anos. A primeira metade da letra era obscenidade; a segunda escandalizou aos que a ouviram no alpendre da casa de um deles. Reescreveu os trechos dos quais se lembrou, dobrou cuidadosamente o papel e guardou o novo amuleto no bolso do casaco.
Ao fundo, tilintou o segundo sinal. Seria o som envelhecido do sino da faculdade? Manhã chuvosa de quarta-feira, uma semana para a formatura. Logo na entrada, Fábio notou o alvoroço. Acompanhando o fluxo de pessoas, chegou ao banheiro de seu prédio. Caiu de joelhos quando viu que os pés de Eduardo não tocavam o chão. Depois de paralisado por alguns minutos, arrumou forças para tirar o bilhete da mão gélida que balançava sem norte.
“... não tem nada a ver com você, amigo. Chorar eu sei que vai, mas não chore muito porque vou feliz. A vida é uma vontade cega e só a venço adiantando o processo... se não for muito, peço que toque Beethoven enquanto os poucos que me consideram estiverem reunidos ao redor do meu corpo!”
O terceiro sinal bateu feito uma flecha em seus tímpanos. Como uma noiva que tira o véu para o primeiro beijo, as cortinas se abriram. A cadeira vazia refletia sua alma. As olheiras já não eram belas; o roxo, a cor da melancolia, da estola diaconal no instante da extrema unção. Os ombros curvados e os braços estendidos ao longo do tronco davam-lhe um aspecto primitivo.
Doou-se com dedicação extra ao primeiro personagem. Este iniciava o ato lamentando a perda do melhor amigo. Os violinos da Nona Sinfonia rasgaram-lhe o âmago do espírito.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo desafio e que venha agora 10000 contos de todo o mundo para que possa mostrar sempre seu talento!!!

Raul Otuzi disse...

Grande conto, grande conto.