segunda-feira, 19 de abril de 2010

Filosofia de segunda

EDUCAÇÃO: A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA

Muitos pensadores afirmam que estamos vivendo um período paradoxal de transição: já conseguimos, em certo sentido, conceber a realidade como algo complexo e que, portanto, requer um pensamento abrangente, entretanto, essa complexidade ainda não foi incorporada em grande parte da ciência, na sociedade e na educação.
Remontemos a origem desse modelo racional fragmentador e dominador que ainda cerceia o homem:
Várias correntes formam a base do pensamento ocidental moderno, dentre elas a Revolução Científica, o Iluminismo e a Revolução Industrial. Em meados do século XVI, a visão de um mundo orgânico, vivo e espiritual, presente na medievalidade, começou a ser substituída pela noção de mundo-máquina. O homem foi colocado como senhor do universo e, pela ciência, poderia e deveria dominar a natureza. Francis Bacon, com seu método de investigação científica que procurava descrever a natureza matematicamente e Galileu Galilei, pai do experimentalismo científico que substituiu a argumentação lógica da dialética formal pela observação dos fatos em si, são grandes expoentes da formação do pensamento moderno. Contudo, duas figuras merecem mais atenção: René Descartes e Isaac Newton. Descartes, patrono do racionalismo, cindiu o homem em corpo e mente e instaurou a superioridade da mente sobre o físico; o culto ao intelecto em detrimento à sensibilidade que vem gerando profundas patologias sociais. Newton, por sua vez, concebeu o universo como um sistema mecânico que funciona de acordo com leis físicas e matemáticas imutáveis. Esse determinismo universal deu origem à idéia de que, para compreender o real, seria preciso dominar e transformar o mundo pela técnica. Técnica esta que serviu de base para a Revolução Industrial, que aumentou desmesuradamente o poder do homem sobre a natureza e automatizou o trabalho humano.
A Ciência Clássica amarrou-nos aos sentidos; mutilou-nos, dividindo-nos em duas substâncias distintas; cegou-nos para o todo ao priorizar as partes; desprezou a qualidade ao enaltecer a quantidade; ignorou as interações entre os indivíduos, entre a ciência e a sociedade, entre a técnica e a ética. O homem alienou-se da natureza.
Obviamente, seria leviandade negar que o desenvolvimento da ciência trouxe e traz grandes benefícios para a humanidade. Entretanto, não podemos deixar de sublinhar o outro lado: ele provocou uma significativa perda em termos de sensibilidade, estética e valores.
Na área educacional, especificamente, as influências do pensamento cartesiano-newtoniano ainda são significativamente negativas. Continua-se gerando padrões de comportamento preestabelecidos, com base num sistema que não suscita questionamento e reflexão. Pelo contrário, faz aceitar a autoridade e ter como metas a certeza e a verdade absoluta. Continuamos limitando nossas crianças ao espaço reduzido de suas carteiras, silenciando suas falas, reduzindo sua criatividade e sociabilidade. Oferecemos folhas quadriculadas para que os seus desenhos saiam mais “certos” e aplicamos provas de múltiplas escolhas. Em vez de processos interativos para a construção do conhecimento, continuamos exigindo memorização, repetição e cópia. Castramos a espontaneidade e o ímpeto criativo. A escola é submetida a controles rígidos, um sistema hierárquico que castra e domestica. Uma escola que divide o conhecimento em assuntos, especialidades, fragmentando o todo. Os currículos são rígidos, baseados na eficiência e calibrados pela mensuração que continua separando ganhadores e perdedores. O professor é o detentor do saber, o transmissor de informação e o aluno uma tábua rasa. O conteúdo e o produto são mais importantes que o processo de construção do conhecimento. A avaliação privilegia a capacidade de memorização do que foi “empurrado goela abaixo” ao invés do processo criativo. O diploma é o símbolo de coroamento de um ciclo de estudos; o símbolo do “final da linha”, do objetivo alcançado.
Mesmo a tecnologia informacional na educação dissemina a fragmentação. Os computadores e os materiais áudio-visuais continuam sendo máquinas de ensinar, transmitindo conteúdo sem um processo reflexivo.
Como escapar desse modelo?
Precisamos fugir do modelo cartesiano-newtoniano, fragmentado, descontextualizado, que concebe o ser humano como máquina. Precisamos romper com o paradigma moderno, iniciar um processo de mudança conceitual, um repensar.
Um primeiro e grande passo foi dado pela assimilação da Teoria da Evolução de Darwin. Uma nova lente para enxergar o universo que passou a ser descrito como um sistema em permanente mudança. Outros conceitos como do da termodinâmica e da entropia, que desconstroem a rigidez da física newtoniana, também são relevantes nesse cenário de transição. Mas foi com teoria quântica e, principalmente com Einstein (com a teoria da relatividade) que o paradigma da ciência moderna começou a desmoronar. Para se ter uma idéia da mudança, a própria existência da matéria não é mais dada como certa, apenas apresenta uma tendência probabilística de existir. Heisenberg descobriu que o simples fato de se observar as partículas já interfere nelas. Observando um evento o observador “perturba” a situação. Assim, podemos dizer que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos e que a distinção entre sujeito e objeto é muito mais complexa do que se imaginava.
A partir do século XX, o universo passa a não mais ser concebido como um relógio. Há irracionalidade; há caos. Em vez de algo estático, temos um sistema plenamente ativo. Essa leitura introduz uma criatividade constante na natureza; leva-nos a aprender a respeitar outras culturas, outros questionamentos.
Tais concepções deram origem a um critério chamado “pensamento em processo”, ou seja, tudo é fluxo, tudo está em constante mutação, inclusive o pensar que não pode ser concebido como absoluto, definitivo. Daí deriva-se a noção de “conhecimento em rede”: de uma base estruturada em blocos fixos, constituída de leis fundamentais, passamos para o conhecimento no qual tudo está interligado. No velho paradigma acreditava-se que as descrições científicas eram objetivas, independentes do observador humano; na mecânica quântica, o ato de observação altera a natureza do objeto. No velho paradigma, a ciência poderia alcançar a certeza absoluta; agora, a pesquisa cientifica está assentada sob formas de teorias transitórias calcadas em probabilidades, um modo de olhar para o mundo e não uma forma de conhecê-lo na realidade. Além do mais, a ordem não é mais um imperativo. Para que haja criatividade é preciso haver perturbações, turbulências que estimulem uma reação do organismo em relação ao meio ambiente.
Mas como estabelecer uma relação entre essas noções e a reflexão educacional? Como esses novos fundamentos poderão trazer mudanças significativas para a educação vigente?
Transferir para a área social-educacional os princípios decorrentes do novo paradigma científico é extremamente difícil. Questões políticas e metodológicas estão envolvidas. Assim, coexistem propostas pedagógicas que reconhecem a educação como um sistema aberto e concebem o ser humano em sua multidimensionalidade, e propostas antigas que ainda concebem a educação de uma forma fechada, estanque, destinada a uma população amorfa.
À luz do novo paradigma, uma nova postura de planejamento em educação terá de envolver uma percepção global da realidade a ser transformada. Embora nos discursos governamentais e administrativos essa necessidade esteja embutida, na prática isso está longe de ser realidade. Essa nova leitura pressupõe um novo estilo de diagnóstico, procedimentos metodológicos que permitam apreender o real em suas múltiplas dimensões.
Do ponto de vista das relações pedagógicas, a epistemologia construtivista apresenta um modelo que, além de resgatar a importância dos pólos da relação, conquista uma dinâmica própria no processo de conhecimento. Podemos vislumbrar isso na obra de Paulo Freire, de Gramsci, de Vygotsky, etc. Grande importância tem a epistemologia genética de Piaget ao reconhecer que o desenvolvimento cognitivo é um processo dialético-probabilísito resultante da interação entre o organismo e o meio, em que tudo está em construção e reconstrução. E ainda que o conhecimento não se origina na percepção, mas na ação dos sujeitos, resulta da interação entre sujeito e objeto.
O pensamento sistêmico, o conceito de auto-organização, as estruturas dissipativas e o conhecimento compreendido como processo, trazem em seu bojo implicações significativas para a educação, enxergando-a como um sistema aberto, no qual existam diálogos, interações, transformações. Sob esse enfoque, o currículo é algo que está em constante processo de negociação e renegociação entre alunos, professores e instâncias administrativas. É um currículo em ação. O professor aceita o indeterminado, as incertezas e aprende a conviver com isso, a usar o imprevisto como ferramenta de ensino.
A educação deve colaborar para catalisar em cada aprendiz a busca de sua própria natureza, a descoberta de sua identidade una para que, conhecendo a si mesmo, os alunos possam desenvolver a capacidade de reflexão e consciência. Para transformar o mundo é preciso, primeiramente, compreender a si mesmo. Para isso, deve criar ambientes de aprendizagem nos quais as atenções estejam voltadas para o resgate do ser humano, ambientes que favoreçam a mobilização dos recursos internos dos indivíduos. Essa nova visão de mundo implica uma necessária mudança de valores, que vai da competição para a cooperação, da quantidade para a qualidade, do consumismo para a conservação. Ambientes que extrapolem as questões pedagógicas. Criando esses novos ambientes educacionais estaremos construindo futuros ambientes sociais e culturais que prezem pela evolução humana.

Referência bibliográfica: " MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente"

3 comentários:

Raul Otuzi disse...

Ótimo texto. Inclusive pela pitadas de utopia. Vale pela reflexão e, principlamente, pela inspiração em agir.

Matheus Arcaro disse...

Raul,
Bom podermos discutir novamente.

Primeiramnente, cabe uma análise acerca da utopia. Grosso modo, utopia é a diferença entre o que está posto e o que deveria estar posto (na visão de determinado autor ou sociedade). Isso fica vidente em obras como a República de Platão e Atlântida, de Bacon.

Vemos tal proposta como utópica porque, sem nos darmos conta, estamos condicionados a pensar dentro das categorias cartesianas.
Um exemplo que ilustra bem isso é o estudo de Focolut sobre a loucura. Antes dele, essas categorias eram bem definidas e o louco, para o bem da sociedade, teria que ser internado. Focoult trouxe à tona outra perspectiva, deixando evidente que esta separação não era tão simples, discutindo até mesmo que ser louco era um ponto de vista.

Fato é que não adianta mexer nos processos educacionais antes de estruturarmos a base, a começar sobre o papel da escola. Kant já dizia que antes de ensinar pensamentos, a escola deve ensinar a pensar. Isso perpassa, dentre muitas outras coisas, o conteúdo curricular e revisão do papel do professor como detentor do saber.

Só podemos mudar algo se partirmos de um ponto de vista utópico, se vislumbrarmos como deveria ser. Senão, o máximo que conseguiremos é descrever o que está acontecendo.

Raul Otuzi disse...

Boa, Matheus!

Aprendi na escola que utopia é o ideal, o sonho, o perfeito, o irrealizável. Mais tarde, na propaganda, aprendi com a Adidas que "Impossible is Nothing". Superação existe sim.

Em resumo, serei um tanto quanto Paulo Coelho para exprimir o que penso: "É melhor mirar nas estrelas e alcançar (no mínimo) o topo das árvores, do que mirar no topo das árvores e acertar o próprio pé."

Grande abraço, continue com seus arroubos utópicos que nos inspiram tanto!