quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Dois artigos interessantes sobre a sujeira do debate eleitoral

Sobre Aborto e Política
Ronaldo Correia de Brito (portal Terra)

A empregada de nossa casa votou em Marina Silva. É o que suponho, pois ela sempre se atrapalhou com o nome da candidata. Estranhei a escolha. Antes, ela havia jurado que não votaria em Marina, pois um evangélico de verdade não se ocupa com política, apenas com as coisas de Deus.

Em Pernambuco, o deputado estadual mais votado foi Cleiton Collins, radialista e pastor da Igreja Assembléia de Deus. Em segundo lugar, o presbítero Adalto, da mesma igreja. Nossa empregada evangélica falou que eles não são pastores de verdade e que não se ocupam das coisas de Deus. Adalto lembra o ator Tony Curtis, que acaba de morrer. Não sei se ele cuida das coisas de Deus, mas da aparência ele não descuida.

Marina Silva é do Partido Verde, recebeu quase vinte por cento dos votos para presidente e poderá ser o fiel da balança na disputa do segundo turno. Se ela tiver um mínimo de coerência não apoiará nenhum dos dois candidatos, pois atacou frontalmente as políticas de ambos e a falta de programa de governo. Mas não existe coerência em política, a não ser nos livros do filósofo Platão. Talvez nem mesmo neles.

Um membro do Partido Verde se preocupa com a causa indigenista e a preservação da cultura desses povos. Entre os índios, é comum a prática de aborto, faz parte da cultura. Marina Silva é evangélica e, portanto, contra o aborto. Como ela trataria essa questão como presidente e membro do Partido Verde? Ela aceitaria que as índias continuassem a fazer aborto, pois é próprio da cultura indígena e proibiria o aborto ao restante das mulheres brasileiras?


Dilma Rousseff manifestou-se a favor do aborto, mas essa posição terá de ser revista, pois leva à perda de votos junto às igrejas católicas e evangélicas. Os pastores, que só deveriam cuidar das coisas de Deus segundo nossa empregada, se elegem com os votos dos fiéis e fazem campanha contra o aborto. Os padres católicos não casam, supostamente não têm vida sexual, desconhecem as angústias de uma gravidez indesejada - também supostamente -, mas são contra o aborto.

José Serra já foi ministro da saude e conhece as estatísticas de mais de um milhão de abortos clandestinos praticados no Brasil todos os anos. Também sabe do elevado número de mortes, sobretudo em mulheres jovens, secundárias a esses abortos clandestinos. Mesmo assim, o candidato José Serra assume a postura conservadora de ser contra o aborto.

Nossa empregada também acha que os candidatos à presidência do Brasil não deveriam se ocupar das questões de Deus. O aborto é uma questão de saude pública, mais grave nos estados do norte e nordeste, onde é menor a educação e existe menos acesso aos meios para o controle da natalidade. Os abortos clandestinos continuarão sendo feitos, com todos os riscos de morte inerentes a essa prática, mesmo que padres e pastores vociferem e ameacem com o fogo eterno da Geena.

Não é necessário que a essas vozes, supostamente de Deus, some-se a dos políticos de olho nos milhões de votos de católicos e evangélicos. A discussão do aborto precisa sair do plano sobrenatural para o real, do religioso para o da ética. Sem mentira, sem falsidade, sem hipocrisia. Deixem as mulheres falarem, elas que são as maiores vítimas desse jogo entre poder religioso e laico.

Nem todos que dizem 'Senhor' entrarão no reino dos Céus
Ronaldo Correia de Brito (portal Terra)

Vi de leve um guia eleitoral na TV e notícias sobre a campanha dos candidatos à presidência. Bem de leve porque os discursos e a campanha publicitária ferem nossa sensibilidade e inteligência. O tom maniqueísta lembra os filmes de Glauber Rocha: O dragão da maldade contra o santo guerreiro e Deus e o Diabo na terra do sol. Embora José Serra se alardeie o representante do bem, beije uma cruz de Cristo pendurada no pescoço e saude a nação brasileira cristã; embora Dilma Rousseff assista missa na basílica de Aparecida e confesse ser devota de Nossa Senhora, tudo soa falso e da mais pura hipocrisia.


Os dois candidatos - cristãos de última hora -, orientados às pressas pelos marqueteiros de olho nos votos "religiosos", desconhecem os Mandamentos e o Evangelho de Mateus. Ignoram que não devem jurar o santo nome de Deus em vão e que a mão esquerda não deve saber o que faz a mão direita. Ao contrário, eles exibem diante das câmeras as ações da mão direita, alardeiam-nas, pois o único fim de seus atos falsamente puritanos é parecerem devotos, piedosos, praticantes do evangelho. - Sepulcros caiados! Lobos vestidos em pele de cordeiro! - gritaria o Cristo, expulsando os vendilhões do Templo.

É inconcebível esse retrocesso ao medievo católico ou ao fundamentalismo evangélico, quando em todas as democracias do mundo o Estado busca se desvincular da Igreja. Basta o exemplo da teocracia islâmica do Irã, onde os direitos democráticos mais elementares não são respeitados e as questões laicas são tratadas como se fossem questões de Deus. Nessa campanha, a política brasileira dá uma guinada para trás, permitindo a intromissão de um poder religioso na decisão eleitoral.

Somente numa democracia como a nossa, que de tempos em tempos sucumbe às ditaduras e que mal se refez do Estado Novo e do Golpe Militar de 64, é possível uma campanha com tamanho maniqueísmo e terror. Somos amedrontados a não votar em 'tal' candidato pelo risco de perdermos a liberdade de imprensa, de uma nova ditadura no molde stalinista, pela concentração do poder em certo partido, e etc., etc., e etc., num jogo político inconcebível num país de cidadãos livres. Existe coisa parecida nas eleições americanas? Os democratas apregoam que os republicanos querem se instalar no poder eternamente? Ou vice-versa? A resposta é não, porque os americanos possuem uma democracia estável.

É uma pena que as eleições não sirvam de oportunidade aos debates sobre educação, saude, desigualdade social e corrupção. Assistimos o vergonhoso circo de candidatos chafurdando em questões de foro íntimo, que nada têm a ver com as mazelas sociais brasileiras, manipulando a fé das pessoas, fazendo promessas impossíveis de cumprir.

A teoria da mestiçagem de Gilberto Freyre não consegue explicar nossa vocação pacífica, que vez por outra explode em arroubos violentos, quase sempre individuais, muito poucas vezes ações coletivas, politizadas, refletidas. Em meio à bem sucedida mistura de raças, tão alardeada, manifestamos um individualismo que nos torna frágeis e manipuláveis. Presas de candidatos que transformam o voto de livre arbítrio em vontade de Deus.

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